Cumprir pena no pior presídio do Brasil não viola, automaticamente, direitos de personalidade, pois o preso só tem direito à reparação na esfera moral, decorrente de falha de serviço, se detalhar e provar os prejuízos causados pelos fatos degradantes a que vem sendo submetido na prisão.
Com este entendimento, a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou pedido de um homem que cumpre pena no Presídio Central de Porto Alegre.
O autor informou que está no local desde outubro de 2009, ano em que o ‘‘Central’’ foi considerado o pior presídio do Brasil, pois chegou a abrigar quase 5 mil detentos, quando foi projetado para apenas 1,6 mil. A superpopulação e as condições sub-humanas o levaram a ser alvo de uma ação civil pública, por parte do Ministério Público; de uma medida liminar, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); e de um processo de interdição.
O homem sustentou que configura ato ilícito o fato de ter sido preso no período posterior ao ajuizamento da ACP, inclusive em face do descumprimento de medidas judiciais para minimizar a situação dos que lá cumprem pena. Afinal, segundo ele, o descaso e a inércia do Estado fulminaram sua dignidade, lhe impondo o cumprimento de pena cruel, e descumprem a lei e a ordem da CIDH.
Ele ainda relatou que a unidade é insalubre e sem condições estruturais de abrigar os apenados. A partir do momento em que o preso é colocado sob a custódia do Estado, argumentou, inicia a responsabilidade direta pela manutenção da integridade física, psíquica, da saúde, da segurança e da vida do detento.
Já o Estado respondeu que a causa de pedir deveria considerar os regimes de execução da pena, o período de recolhimento e os eventos de fuga. Nessa linha, afirmou que a culpa administrativa deve ser avaliada segundo o padrão normal de conduta que se poderia exigir do serviço público, acordando com suas possibilidades reais médias. Com isso, o caso não comporta a aplicação da responsabilidade objetiva, prevista no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição.
Além de pedir a aplicação da ‘‘reserva do possível’’ — reconhecimento da limitação de recursos para o Estado cumprir com suas obrigações — , o governo gaúcho alegou que o pedido de reparação deve ter correspondência com a lesão e orientar-se pelo princípio da razoabilidade, previsto no artigo 944 do Código Civil. Sustentou que os alegados danos não restaram comprovados nos autos.
Dever administrativo A juíza Gioconda Fianco Pitt, da 5ª. Vara da Fazenda Pública, do Foro Central da Capital, ponderou que a responsabilidade civil objetiva é a regra dos entes da administração pública. No caso dos autos, porém, ela disse que vale o prisma da responsabilidade subjetiva, já que os danos alegados pelo autor são atribuídos à suposta omissão do Estado em zelar pela sua integridade física. Ou seja, é preciso apurar se o serviço não funcionou ou se funcionou de forma tardia ou ineficiente.
‘‘Se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstara o evento lesivo’’, concluiu a juíza. ‘‘Seria um verdadeiro absurdo imputar ao Estado responsabilidade por um dano que não causou, pois isto equivaleria a extraí-la do nada’’, definiu.
Ela reconheceu que o Presídio Central apresenta uma série de irregularidades e deficiências, mas disse que também há falhas em outros setores fundamentais do atendimento estatal – escolas, hospitais etc. Por isso, acolher a pretensão do autor significaria atender todo cidadão que postular acesso a um serviço público básico.
‘‘A reparação em dinheiro não vai minorar a violação à dignidade do autor; pelo contrário, pois os recursos do Estado são escassos e de melhor proveito se empregado na melhoria do sistema carcerário do que pagar inúmeras indenizações individuais. Além disto, o autor continuaria a se submeter às condições degradantes sem poder fazer uso da quantia. A reparação do dano não é somente em dinheiro’’, concluiu, julgando a demanda improcedente.
Argumento genérico O autor recorreu, alegando que o direito do Estado está sendo preservado às custas do direito dos apenados. Sustentou que o Estado insiste em nada fazer, mostrando o total descaso ao longo de décadas para com a situação prisional, não restando qualquer dúvida das condições medievais nas quais se encontra a Cadeia Pública de Porto Alegre.
Para o relator do recurso, desembargador Jorge Luiz Lopes do Canto, o pedido de danos morais é genérico, sem indicar de que forma o autor foi atingido em seus direitos de personalidade em razão da situação crítica relatada. A petição, segundo ele, não indica minimamente quais são os fatos degradantes a que está sendo submetido, como falta de alimentos, se foi obrigado a dormir no chão ou outro desconforto qualquer.
Embora o Rio Grande do Sul tenha sido condenado na ação civil pública a ampliar o número de vagas no sistema carcerário, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que os danos morais devem ser comprovados individualmente para cada detento.
Isso não se verifica no caso em exame, de acordo com o relator, pois não há fato certo e determinado descrito com precisão, demonstrando a ocorrência de conduta ilícita. A decisão do STF, com repercussão geral, saiu do julgamento do Recurso Extraordinário 580252, ocorrido em fevereiro de 2017.
‘‘Por outro lado, não é plausível exigir do Estado, sabidamente carente de recursos financeiros, desprovido de verbas suficientes e adequadas para atender a todas as necessidades da sociedade, que indenize de forma indiscriminada todo apenado que pleitear dano moral em razão da superlotação do sistema prisional, havendo necessidade de serem estabelecidas prioridades na atuação estatal’’, escreveu, em voto seguido por unanimidade.
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Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 29 de janeiro de 2018, 14h58 - Site Conjur - A imagem da capa do site Multisom foi retirada de arquivos da internet